As Crônicas da Vacilândia - O Bolinho do Marechal

Este trecho foi extraído do livro Nem Queria Mesmo – Memórias de um Primeiro Ministro, e relata os bastidores da administração da Vacilândia, revelando como foi contida uma potencial revolução de hereges usurpadores golpistas.


Após a Revolução Silenciosa, apesar de toda a dor e sofrimento que ela causou em nosso Reino, tudo voltava ao normal, vagarosamente. A produção de tiras havia sido normalizada, eu ainda era Primeiro Ministro e o Povo andava calmo, ou pelo menos era o que parecia, como vim a descobrir um dia. Estava em meu gabinete, conferindo a correspondência, quando me deparei com um memorando das Forças Armadas Vacileiras da Vacilância solicitando acréscimo orçamental de uma quantidade absurda de bocoletas!

Aquilo era inaceitável, visto que vínhamos enfrentando uma crise. Àquela época, o Rei Bocó, Rafael I (e único), estava dedicando todo o orçamento do Reino para a construção de (outra) lagoa de anfíbios resmungões azedos. A primeira já havia sido construída tempos atrás, a famosa Lagoa da Cretinice, um dos pontos turísticos mais visitados da Vacilândia. Graças a esse sucesso, e ao crescimento da população desta espécie de anfíbios que só é encontrada nesta região, o Rei decidiu pela construção da Lagoa de Rárrárrunf, lançando imediatamente uma campanha de arrecadação de fundos (via aumento de impostos) para tomar, digo, roubar, digo, pedir auxílio ao povo bocó. No entanto, até que esta campanha fosse concluída e as verbas arrecadadas entrassem em nossos cofres, a construção da Lagoa de Rárrárrunf vinha sendo custeada pelo nosso dinheiro. Eu mesmo fiz o imenso sacrifício de abrir mão do meu (insignificante) salário em prol das obras de sustentabilidade do Reino. Por isso, era simplesmente inviável aumentar o orçamento das Forças Armadas Vacileiras da Vacilândia!

Imediatamente convoquei o Marechal. Seria imensamente prazeroso dizer não a ele, que se achava o queridinho do Rei. Quer dizer, era um assunto de extrema importância, cuja negativa deveria ser dada pessoalmente, para que eu pudesse explicar adequadamente os motivos da recusa. Deixei recado com a aspirante a oficial Lua, pois o Marechal estava dormindo, depois de passar a noite em guarda, ordenando que o digníssimo comparecesse ao Meu Gabinete o mais brevemente possível! No dia seguinte ele enviou um telegrama avisando que estava a caminho.

Depois de dois dias, ao chegar em Meu Gabinete, me deparei com o digníssimo Marechal, acomodado em seu saco de dormir de gala, dormindo à porta do Meu Gabinete.

- Marechal – chamei, sem resposta. – Marechal – repeti, falando mais alto, ainda sem resposta.

Me aproximei e toquei em seu braço, mexendo de leve.

- Marechal – insisti, ainda sem resposta. – Marechal! – novamente, mexendo com mais força e falando mais alto, mas ele não respondia. – MARECHAL!!!

- Groingzcqsaaielacgorass...

- O quê? Pare de grunhir e fale direito!

- Não precisa gritar... Já estou acordado...

- Ótimo. Recolha suas bugigangas e adentre, por favor – disse, enquanto passava por cima do digníssimo e entrava em Meu Gabinete.

Uma hora depois, o Marechal finalmente entrou, carregando sua mochila de gala com seu equipamento militar de gala, vestindo seu pijama de gala.

- Não precisava de tanta pompa, Marechal, mas agradeço a consideração em usar seus trajes de gala para atender à Minha Convocação.

- O quê? Fala desses trapos? São da coleção 2014, costumo usar pra pescar ou quando não quero sujar minhas roupas bonitas...

Olhei de soslaio, claramente indignado com tal afirmação. Mas relevei e continuei a conversa.

- Deve estar se imaginando por que o convoquei, Marechal.

- Vossa Ministreza me chama toda semana pra explicar algo que já sei. Deixei de me preocupar com isso há tempos. O que é dessa vez?

Ele estava tentando me irritar. Era sabido em todo o Reino que o Marechal tinha inveja do Meu Gabinete, por ser dentro do Palácio Real e a menos de 600 metros do salão do trono. As fotos que ele postava em viagens oficiais com o Rei eram puro recalque, como eu bem sabia, uma vez que eu não podia acompanhá-lo por ser o responsável pelo Reino na ausência de Vossa Bocojestade. Isso é, quando ele não deixava Zíper cuidando do trono, eu era o responsável. Respirei fundo, mantive a calma e continuei a conversar civilizadamente. Não cederia àquela provocação.

- Convoquei-o apenas para dizer que é impossível conceder este acréscimo de orçamento. Vossa Militareza deseja levar a negativa carimbada em mãos? Ou devo enviá-la por correspondência bocóficial?

- Vossa Ministreza, peço que reconsidere esta posição, por favor.

- E por que eu deveria reconsiderar? O Senhor Marechal sequer justificou a solicitação! “Confidencial” não é motivo suficiente para conceder um acréscimo de tamanha magnitude!

- “Confidencial” para o caso de a requisição cair em mãos erradas. Como as suas – essa última frase foi sussurrada, e eu não pude ouvi-la direito, mas tenho quase certeza que foi isso que ele disse. E minha paciência estava se esgotando.

- O que disse, Marechal? Continua grunhindo? Ainda não está suficientemente acordado?

- Eu disse, Senhor Primeiro Ministro, que “Confidencial” é para garantir o sigilo das informações sigilosas da Vacilândia. Proteger nossos segredos secretos dos inimigos de nosso Reino.

- Nosso Reino não tem inimigos. Todos “amam” nosso “Rei”. – respondi, seguindo o Protocolo de Amor Real ao Rei Bocó – E de todo jeito, o que poderia ser tão sigiloso e precisar de tantas bocoletas assim?

- Precisamos iniciar imediatamente um treinamento de técnicas interrogatoriais intensivas de alta eficácia com ênfase em dedodurismo e liberação não voluntária de informações secretas.

Fiquei pasmo, sem reação. Aquilo era completamente inesperado, ainda mais vindo de nosso Marechal, um molenga, digo, pacifista, cuja liderança frente às Forças Armadas Vacileiras da Vacilândia era sempre em busca da paz e da evitação de conflitos. Era uma imensa surpresa que ele estivesse solicitando algo de tal natureza.

- Tortura, Marechal?

- Não, Senhor Primeiro Ministro. Técnicas interrogatoriais intensivas de alta eficácia com ênfase em dedodurismo e liberação não voluntária de informações secretas. Não falei em tortura, é o Senhor quem está dizendo.

- Dizendo o quê, Vossa Militareza? Não falei nada. E por qual motivo o Senhor Marechal precisaria de tais técnicas, em nosso Reino tão pacífico, calmo e tranquilo? Nem temos revolução agendada para esta semana e, conforme manda o Protocolo Revolucionário da Vacilândia, todas devem ser comunicadas com 4 dias inúteis de antecedência para programarmos as festividades e declararmos feriado bocóficial. Por qual motivo precisaríamos destas técnicas interrogatoriais?

- É confidencial, Vossa Ministreza.

- Então, lamento, mas “confidencial” não me parece argumento suficiente. Passar bem, Marechal.

E então, ele disse rapidamente, num meio sussurro, e aquilo mudou tudo:

- Temos informações de potenciais insurgentes em nosso Reino, que talvez estejam organizando uma organização secreta para tomar o Trono Bocó.

Imediatamente desliguei o gravador.

- Fale baixo, Marechal! As paredes têm ouvidos! O que quer dizer com isso? É verdadeira esta informação?

- Nossas paredes ouviram conversas suspeitas, Senhor Ministro. Segundo relatórios recentes, há indícios de que, talvez, alguns cidadãos bocós não gostem de paçoca.

- Mas daí, melhor pra quem gosta. Sobra mais. Ou assim diz o Rei. O mesmo se aplica ao brócolis, é claro.

- Brócolis são um tópico à parte, que teremos que tratar em breve. E, em teoria, sim, Vossa Ministreza tem razão. Já tínhamos conhecimento de alguns indivíduos que dizem não gostar de paçoca. Estão devidamente registrados no Cadastro de Doadores de Paçoca em Caso de Emergência, uma vez que não consomem as unidades regularmente fornecidas pelo Reino. No entanto, relatórios recentes relatados pelas paredes apontam para um aumento no número de indivíduos com este transtorno paçocal, e os mesmos têm se encontrado com certa regularidade. Não sabemos quais são suas intenções e também não sabemos se nos darão tal informação voluntariamente. Por isso, precisamos nos preparar e melhorar nossas técnicas interrogatoriais. Cócegas não têm funcionado mais. São utilizadas com tanta frequência que nossos cidadãos estão desenvolvendo resistência.

- E no que o Senhor pensou, para pedir tantas bocoletas?

- O gravador está desligado?

- Sim, não se preocupe.

Ele tirou do bolso uma fita cassete. Da mochila, pegou um aparelho portátil de tocar fitas cassete.

- Senhor Primeiro Ministro, entenda que isso é altamente sigiloso. – Disse ele, enquanto inseria a fita no dispositivo.

- Não se preocupe, Vossa Militareza.

- Precisamos adquirir 22 unidades deste tocador portátil, e providenciar pelo menos 44 unidades desta fita cassete, para garantir que serão suficientes em nossos interrogatórios.

E então, ele apertou um botão, e o dispositivo começou a tocar. Sons horripilantes, dolorosos, que pareciam gritar no fundo do meu cérebro, rasgar minha alma, dilacerar meu corpo. A dor era emocional, física, histórica, fantasiosa, estomacal. A dor doía em todos os aspectos do meu ser. Tapei meus ouvidos, chorando, caí da cadeira e estava prestes a perder meus sentidos quando ele desligou o aparelho. Após me recuperar, sentei-me novamente, encarando o Marechal, sem saber o que pensar.

- Isso... bolinho... essa... arroz... eu... depois...

- Precisamos disso, Vossa Ministreza.

- Isso... É muito duro, Marechal. Cruel, desumano. Bocó nenhum merece tal nível de tort...interrogatório.

- Eu sei. E apenas nossos agentes de elite terão este instrumento em mãos. Esta é uma técnica muito antiga, e apenas por ser líder de nossas Forças Armadas Vacileiras da Vacilândia eu tenho conhecimento dela. E essa não é a mais cruel da história bocóumana, Senhor Primeiro Ministro. Mas é o mais fundo que tenho coragem de chegar, para proteger nosso Rei, nosso Trono e nosso Reino.

- O Rei nunca aprovaria tamanha crueldade...

- Ele não precisa ficar sabendo.

- Então... Mentiremos ao Rei?

- Mentirinhas são... delicadas, frágeis. Têm pernas curtas e são difíceis de sustentar. São um grande problema... Mas se não contarmos, não serão mentirinhas. Serão segredinhos.

Olhei para ele, seriamente. Peguei o carimbo verde.

- E como justificaremos tamanho aporte de verbas para as Forças Armadas Vacileiras da Vacilândia?

- Deixe isso comigo, Vossa Ministreza. Estará descrito em meu relatório ocasional como “Meta Estendida”. E será nosso... segredinho.

Autorizei, e dispensei o Marechal. Esse episódio me assombra até hoje. Todos os documentos foram preenchidos em código, e o Rei nunca soube o tamanho do sacrifício que nos dispusemos a fazer para proteger seu trono. E eu, com medo da minha própria consciência, nunca quis saber se aquelas fitas foram utilizadas ou não. Hoje faço esse desabafo na minha autobiografia não autorizada, para que possa enfim estar em paz...

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